[ Pausa Musical ] Samba de primeira / Almir Guineto [1946-2017]

seleção de Marcus Vidal / texto de Bernardo Oliveira [ clique aqui para ouvir a playlist ]



Almir Guineto foi sambista completo e inovador
por Bernardo Oliveira  [publicado na FSP, 8 de maio de 2017]

Almir Guineto - derivação do apelido magnata, que evoluiu para magneto e, então, Guineto - não era somente um mestre do partido-alto, forma de samba calcada na arte de fazer versos de improviso. Tampouco se resumia a um compositor versátil, que alcançou sucesso de público investindo na renovação do samba. Suas capacidades excediam também o grande instrumentista, pois além de tocar cavaquinho, violão e percussão com maestria, reinventou um instrumento outrora associado à música americana, o banjo. Almir era mais do que um "sambista" ou um "artista completo". Estamos diante de uma força demiúrgica, um "artesão divino" capaz de parir o novo e dar outra forma à matéria existente. Após a revolução do Estácio nos anos 30, Guineto e seu comparsas do Cacique de Ramos constituíram-se no final dos anos 70 como os grandes arquitetos, renovadores e experimentadores do samba e da música brasileira no "século do progresso".

Nascido na rua Junqueira, "a 500 metros da quadra da Acadêmicos do Salgueiro", praticamente dentro da escola, que fora fundada em 1953 a partir da reunião de duas agremiações locais, a "Azul e Branco" e a "Depois Eu Digo". Seu pai, Iracy Serra, violonista e integrante da ala dos compositores do Salgueiro, participava do espetáculo "A Fina Flor do Samba", que ocupou o Teatro Opinião em 1966. Sua mãe, a célebre "Dona Fia", era compositora, costureira e uma das personagens principais da Acadêmicos do Salgueiro. Seu irmão Chiquinho foi um dos fundadores do grupo Originais do Samba, do qual Mussum fazia parte. Outro irmão, Lourival Serra (Mestre Louro), foi o maior diretor de bateria do Salgueiro. A comunidade tinha características peculiares, justificando seu lema: "Nem melhor, nem pior, apenas diferente". Nesta época, o Salgueiro abrigava uma pluralidade de manifestações culturais e musicais que se fixaram na região no final do século 19. Como o Jongo do Seu Castorino, o Calango e a Macumba.

O caldeamento cultural promovido pelo êxodo de negros bantos trouxe para o Salgueiro a gama de danças e ritmos que circunscreviam essas comunidades, influenciando decisivamente o estilo de Almir enquanto compositor e instrumentista. Em meados dos anos 1970, Almir mudou-se para São Paulo para acompanhar o Originais do Samba como cavaquinista. Nesta época, destacava-se o instrumentista, mas a partir de 1975, passa a emplacar suas composições.

A primeira, "É Ouro só", parceria com Mussum, integrava o disco "Alegria de Sambar", dos Originais. Beth Carvalho emplacou sucessos como "Coisinha do Pai", "É, Pois É" e "Pedi ao Céu". Participou da fundação do maior grupo de samba da história, o Fundo de Quintal, com alguns dos companheiros que frequentavam o pagode do Cacique de Ramos.Em 1980, o grupo lançou "Samba É no Fundo de Quintal", seu primeiro disco, apresentando outras maneiras de compor aliadas às sonoridades trazidas pelos instrumentos inventados. No ano seguinte, como intérprete de "Mordomia", de Ary do Cavaco e Gracinha, ficou em 3º lugar no prêmio MPB Shell.

Com o trabalho solo não foi diferente: seu legado é de 13 discos e mais de 300 composições gravadas. Por onde passou, Almir catalisou com vigor e precisão uma série de inovações que atraíram a atenção do público. A invenção do banjo é causa de controvérsia. Almir teria adotado o instrumento por sugestão de Mussum, mas também por razões acústicas, pois o volume se igualava ao das percussões. Destacou-se também pelo modo extremamente original de executar o instrumento, afinando-o à moda das últimas cordas do violão e palhetando-as velozmente, fazendo-as tremular conforme o suingue do repique de mão e do tantan. O efeito bombástico dessa combinação sonora, calcada na justaposição de síncopes e fremidos velozes, criou uma sonoridades particular. Segundo Nei Lopes, a diferença era a forma como Almir empregou o banjo nas rodas de pagode, soando como um "reco-reco harmônico".

Como intérprete, o sucesso veio com "Caxambu", parceria a oito mãos protagonizada por quatro compositores do morro do Tuiuti, Élcio do Pagode, Jorge Neguinho, Zé Lobo e Bidubi. Gravado em 1986 no disco "Almir Guineto", "Caxambu" fez com que Almir viajasse o Brasil inteiro. Curioso é que Jongo e Caxambu não eram o seu forte, e a composição era um samba mesmo, inspirando no batuque da umbanda. Compunha com maestria as canções pungentes e os partidos fulgurantes, artesão de releituras arrojadas do samba de roda, do partido alto, das valsas, pontos de umbanda, de músicas românticas e religiosas, cantou a solidão, a superação ("tem que lutar!") e o amor com irreverência ("aquela boca sem dente que eu beijava, já está de dentadura").

Com dois de seus parceiros assíduos, o paulistano Luverci Ernesto e o salgueirense Luiz Carlos Chuchu, compôs uma das mais belas canções da música popular brasileira, ignorada por nossos críticos, "É, pois é". A melodia exprime a intenção do lamento, da súplica, servindo de fio condutor para uma trama tingida por imagens bíblicas, rancor, arrependimento e traição. Os temas e elementos bíblicos são retomados dois anos depois em outra parceria com Luverci, "Pedi ao Céu": "Pedi ao céu um remédio que possa curar". Nunca hesitou em trabalhar em colaboração com outros compositores. Por exemplo, Caprí, seu primeiro parceiro. Adalto Magalha, coautor de "Rendição". Compôs clássicos com Beto Sem Braço, Zeca Pagodinho, Sombrinha, Carlos Senna, J. Laureano e, mais recentemente, passou a trabalhar com aquele que era atualmente seu maior discípulo, o salgueirense Fred Camacho, compositor refinado e exímio instrumentista.

Seu canto também era uma síntese de muitas vozes: podemos escutar o manejo preciso da eloquência de Orlando Silva, a divisão sincopada de Ciro Monteiro, o timbre áspero e potente de Clementina de Jesus, e até mesmo a influência do "scat singing" americano. Certa vez, numa entrevista, definiu sua voz como "voz de crioulo americano do jazz", possivelmente em referência ao timbre rouco de Louis Armstrong. Responsável por transformações na música de sua época, Guineto obteve pleno reconhecimento de seu público e dos maiores sambistas do Brasil. Dificilmente se vai a um pagode ou a uma festa popular em que as músicas de Almir Guineto não são tocadas. Conhecido entre o povão, foi, contudo, negligenciado pela academia e pela crítica especializada, assim como pela grande imprensa. Interpreto este flagrante descaso sob a dupla insígnia da nossa conhecida discriminação social e, sobretudo, racial.

Mas Almir foi além e foi maior. Por todo o tempo em que esteve em atividade, apostou no seu próprio estilo, transitando com liberdade por muitas tradições. A sonoridade potente e a divisão suingada da voz aliada ao banjo original diferiam de tudo o que se conhecia em termos de música no Brasil. Sua presença exalava os pagodes feitos na raça com participantes cantando e batendo na palma da mão. Como Arlindo Cruz costuma dizer: "Se o samba tivesse uma imagem, seria a de Almir Guineto".

[ Bernardo Oliveira ]